Pessoa com deficiência: aspectos teóricos e práticos1 Organizador: Programa Institucional de Ações Relativas às Pessoas com Necessidades Especiais (PEE) Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), 2006 Organizador: Programa Institucional de Ações Relativas às Pessoas com Necessidades Especiais (PEE) Revisão gramatical : Raquel Ribeiro Moreira Capa: Alexandre Mendes dos Reis (Núcleo de Inovações Tecnológicas (NIT)/Unioeste Tiragem: Programa Institucional de Ações Relativas às Pessoas com Necessidades Especiais (PEE) Equipe: Campus de Cascavel Vera Lúcia Ruiz Rodrigues da Silva (Coordenadora do PEE) Jane Peruzo Iacono (Coordenadora do Projeto do MEC) Alfredo Roberto de Carvalho Claudia Picolotto Dorisvaldo Rodrigues da Silva Enio Rodrigues da Rosa Joice Maura Schwengber Jomar Vieira da Rocha José Roberto Carvalho Luzia Alves da Silva Maria Filomena Cardoso André Patrícia da Silva Zanetti Soelge Mendes da Silva Vandiana Borba Campus de Foz do Iguaçu Cristiane Ferraro Gilabert da Silva Ligia Angélica Radis Steinmetz Campus de Toledo Sandra Regina Belotto Campus de Francisco Beltrão Dejair Cardoso Baseggio no prelo – Gráfica UNIOESTE – 30/05/06 Adriana de Mello Rosane de Arruda Campus de Marechal Cândido Rondon Zelina Berlatto Bonadiman Sumário Capítulo I PESSOA COM DEFICIÊNCIA NA HISTÓRIA: MODELOS DE TRATAMENTO E COMPREENSÃO Capítulo II ASPECTOS POLÍTICOS E JURÍDICOS DA EDUCAÇÃO ESPECIAL BRASILEIRA Capítulo III PESSOA COM DEFICIÊNCIA: CARACTERIZAÇÃO E FORMAS DE RELACIONAMENTO "Nada é impossível de mudar Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo. E examinai, sobretudo, o que parece habitual. Suplicamos expressamente: não aceiteis o que é de hábito como coisa natural, pois em tempo de desordem sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada, nada deve parecer natural nada deve parecer impossível de mudar." (Antologia Poética de Bertolt Brecht) Apresentação É com imensa alegria que apresentamos este livro elaborado por integrantes do Programa de Educação Especial (PEE – Campus de Cascavel), dos grupos de pesquisa HISTEDOPR – História, Educação e Sociedade do Oeste do Paraná – subgrupo Educação da Pessoa com Deficiência1 da Universidade Estadual do Oeste do Paraná e GPAAD – Grupo de Pesquisa Aprendizagem e Ação Docente e a Assessoria de Políticas Públicas e Inclusão da Pessoa com Deficiência, da Prefeitura Municipal de Cascavel. Tem como colaboradores a PróReitoria de Extensão (PROEX), o Centro de Educação, Comunicação e Artes (CECA) e o Colegiado do curso de Pedagogia desta universidade. Sua realização devese ao projeto “Formação Continuada em Educação Especial e Tecnologias nas Áreas das Deficiências Física e Visual para Professores do Ensino Básico", uma atividade de extensão proposta pelo Programa Institucional de Ações Relativas às Pessoas com Necessidades Especiais (PEE), financiado pelo MEC/SESU. Além disso, este projeto conta com o apoio do NIT – Núcleo de Inovações Tecnológicas/UNIOESTE e de órgãos municipais e estaduais que atuam na educação e educação especial no município de Cascavel. A realização deste projeto objetiva oportunizar a formação continuada de profissionais da educação que estão atuando no ensino básico. O Programa Institucional de Ações Relativas às Pessoas com Necessidades Especiais, da Unioeste, resumidamente chamado de Programa de Educação Especial PEE, criado em 1997, tem se caracterizado pela intensa relação com o movimento social de pessoas com deficiência, onde integra o Fórum Municipal em Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência, e pela implantação de serviços necessários ao ingresso e permanência dessas pessoas no meio acadêmico. Iniciado no campus de Cascavel, estendeuse aos outros quatro campi da Unioeste, primeiramente com as bancas especiais no vestibular e demais concursos, depois no apoio à permanência dos acadêmicos com deficiência, na realização de projetos de extensão e eventos, integrandose às demais universidades paranaenses. A pesquisa e o ensino hoje integram as atividades do PEE e compõem a pauta do debate contínuo no interior do Programa. Institucionalmente é vinculado à PróReitoria de Extensão (PROEX) e ao Centro de Comunicação, Educação e Artes (CECA), do campus de Cascavel. É neste contexto que o presente livro foi escrito, fruto da reflexão e do debate coletivo, dos inúmeros estudos que resultaram em monografias e dissertações dos integrantes do grupo, os quais apontam para a superação da naturalização das deficiências, imprimindo uma direção científica para as discussões e atuação do Programa. Sua produção foi um processo que envolveu a equipe do PEE e do HISTEDOPR – subgrupo Educação da Pessoa com Deficiência: inicialmente os participantes definiram coletivamente as temáticas a serem desenvolvidas, bem como os responsáveis pela elaboração de uma primeira versão dos artigos; num segundo momento estes foram apreciados pelo coletivo, o qual buscou contribuir para o aprofundamento dos aspectos abordados. Os estudos da obra de Vigotski e de autores da Psicologia HistóricoCutural, de outros tantos pesquisadores brasileiros da área, alguns deles inclusive estiveram debatendo em seminários promovidos pelo PEE e por outras instituições de pessoas com deficiência de Cascavel, têm qualificado as pesquisas realizadas, associandoas à luta pela efetivação dos direitos sociais das pessoas com deficiência, destacandose o trabalho e a educação. E, o que é especialmente importante, os conhecimentos produzidos estão intimamente relacionados e dirigidos para as práticas pedagógicas, seja na docência nos cursos de graduação e de pósgraduação, seja nas escolas onde vários dos integrantes do grupo atuam. A presente obra traz contribuição significativa para a reflexão a respeito de quem são as pessoas com deficiência e o processo histórico de tratamento e compreensão, desmistificando a idéia de que pessoa com deficiência deve ser vista apenas como objeto da filantropia e reconhecendo o fenômeno das deficiências como produto histórico e social. O texto sobre os aspectos políticos e jurídicos da Educação Especial brasileira é uma inédita análise Para efeito da elaboração desta obra tomase como conceito de deficiência a definição do Decreto 3298/ 99. histórica, pelos documentos utilizados e o fio condutor da reflexão, expondo as contradições existentes na nossa sociedade e nas políticas públicas atuais. Apresenta condições de provocar e subsidiar um debate aberto e aprofundado particularmente sobre a inclusão escolar e a luta nos movimentos sociais das minorias. As orientações para o relacionamento com as pessoas com deficiência, destacando as diferentes áreas de deficiência e a acessibilidade, com ênfase para o espaço das relações em sala de aula, contribuirão como um instrumento importante para o processo de inclusão escolar. Nestes textos está certamente explícito o compromisso político do PEE. É nele que temos nos alimentado e encontrado as razões para nos mantermos na luta! Esperamos que sua leitura, de uma maneira ou de outra, seja uma contribuição para o aprofundamento da reflexão dos educadores. Lucia Terezinha Zanato Tureck Docente do Colegiado de Pedagogia da Unioeste – campus de Cascavel CAPÍTULO I PESSOA COM DEFICIÊNCIA NA HISTÓRIA: MODELOS DE TRATAMENTO E COMPREENSÃO Alfredo Roberto de Carvalho1 Jomar Vieira da Rocha2 Vera Lúcia Ruiz Rodrigues da Silva3 Nos últimos tempos, como resultado da luta das próprias pessoas com deficiência, vem ganhando espaço na sociedade a proposta de romper com os tradicionais paradigmas segregativos e a adoção de procedimentos que possam contribuir para garantir a essas pessoas as condições necessárias à sua participação como sujeitos sociais. Este processo ganhou mais força com a Declaração de Salamanca (1994) que propôs o paradigma da inclusão social, afirmando a necessidade de todos se comprometerem com a eliminação das barreiras que vêm excluindo uma parcela considerável da população mundial, dentre a qual se encontram as pessoas com deficiência física, sensorial e mental. Em relação a este segmento, o ponto de partida de seu processo de marginalização é a sua exclusão do processo produtivo, pois segundo PASTORE (2000, p.7), o Brasil é possuidor de um dos maiores contingentes de pessoas com deficiência (16 milhões) do mundo, sendo que destes, 60% encontramse em idade de trabalhar, mas 98% dos mesmos estão desempregados. Este último dado revela que a imensa maioria dessas pessoas não está conseguindo se inserir nas atuais relações sociais de produção e, desta forma, sem condições de prover seus meios de vida e ainda ficando à margem do atual processo histórico. Um outro aspecto que caracteriza as atuais condições de existência das pessoas com deficiência, e que tem relação direta com a sua exclusão do processo produtivo, reside no fato de as mesmas serem compreendidas e tratadas como se fossem completamente distintas dos demais seres humanos. No imaginário social, tais pessoas são consideradas como improdutivas, inúteis e incapazes, sendo tomadas como um fardo pesado ou uma cruz a ser carregada pela família e pela sociedade. Esta forma de tratamento desconsidera a possibilidade de se constituírem como sujeitos e transformamnas em objetos da caridade e da filantropia. Nesta forma de tratamento, as pessoas com deficiência quase sempre são concebidas como doentes ou, enquanto seres, eternamente infantis. Ainda existem aqueles que procuram atribuir uma razão mística para a existência de pessoas com deficiência, prática esta recorrente dentre as diversas culturas. Este modelo de se ver, compreender e tratar as pessoas com deficiência não é próprio de uma classe da sociedade e nem de seu setor menos esclarecido. Mesmo aqueles que dispõem de uma cultura erudita, que conseguem formular uma consciência crítica a respeito da realidade, reproduzem em sua práxis, geralmente as mesmas atitudes preconceituosas e discriminatórias em relação àqueles que pertencem a esse segmento social. Via de regra, não percebem que as pessoas com deficiência física, sensorial e mental também compõem a totalidade social e, desta forma, vivenciam as contradições que são produzidas historicamente. 1 Professor colaborado do Curso de Pedagogia da UNIOESTE, Professor Pedagogo da SEED/PR, Membro do Grupo de Pesquisa HISTEDOPR – Subgrupo de Educação da Pessoa com Deficiência e Conselheiro da ACADEVI (Associação Cascavelense de Pessoas com Deficiência Visual).  2 Professor da SEED/PR, Membro do Grupo de Pesquisa HISTEDOPR – Subgrupo de Educação da Pessoa com Deficiência e Coordenador da APPIS (Acessoria de Políticas Públicas e de Inclusão Social da Pessoa com Deficiência). 3 Coordenadora do Programa de Educação Especial da UNIOESTE, Membro do Grupo de Pesquisa HISTEDOPR – Subgrupo de Educação da Pessoa com Deficiência e Coordenadora Executiva da ACADEVI (Associação Cascavelense de Pessoas com Deficiência Visual), Conselheira Municipal da Assistência Social do Município de Cascavel.. Ainda, quase sempre, reduzem as causas das dificuldades enfrentadas por essas pessoas as suas características pessoais, desresponsabilizando as barreiras sociais e, com isto, naturalizam a segregação de que são vítimas, auxiliando a reforçar a consciência social para as práticas caritativas e filantrópicas. O combate a essa situação exige um rompimento com paradigmas excludentes produzidos ao longo da história e que, ainda hoje, têm fundamentado a práxis do homem atual em relação a este segmento social. A história da humanidade sempre foi marcada pela segregação e exclusão econômica, política, social e cultural das pessoas com deficiência, afetando, principalmente, aquelas pertencentes às classes exploradas. Ao se buscar analisar as condições de existência das pessoas com deficiência ao longo da história, podem ser encontrados diferentes modelos de tratamento e compreensão destinados a este segmento social. As principais formas de tratamento podem ser resumidas nos modelos do extermínio ou abandono, da institucionalização, da integração e da inclusão. Os entendimentos explicativos a respeito das causas das deficiências, bem como das possibilidades de existência para aqueles que as possuem, podem ser agrupados nos modelos místico, biológico e sóciopsicológico. Analisando as informações disponíveis a respeito das condições de existência dos homens nas sociedades primitivas, tanto as que se constituíram nos primórdios dos tempos, quanto as mais próximas do atual momento histórico, é possível verificar como estas concebiam e se relacionavam com as pessoas com deficiência. A característica principal das sociedades primitivas era o baixíssimo nível de desenvolvimento das forças produtivas, o que obrigava os homens a viverem no nomadismo, onde suas condições de existência estavam totalmente na dependência do que a natureza lhes proporcionava, ou seja, a coleta de frutos, a caça e a pesca, no que se refere à alimentação, e as cavernas no tocante a abrigos. Neste período histórico, devido ao caráter cíclico da natureza, totalmente fora do controle dos homens, os deslocamentos do grupo eram constantes, sem que o mesmo pudesse auxiliar aqueles que não se encontrassem em condições de acompanhar o seu ritmo. "(...) em função desta prática, abandonavam aqueles que não pudessem moverse com agilidade, ou que tivessem alguma diferença que impedisse sua mudança de um lugar para outro com rapidez" (BIANCHETTI, 1998, p.27). Dentre estes abandonados, encontravamse pessoas com deficiência. Este procedimento não resultava de um sentimento de ódio ou de desprezo, mas decorria do processo de seleção natural, a que os homens ainda se encontravam submetidos. Já nas sociedades escravistas, grega e romana, verificouse a supervalorização do corpo perfeito, da beleza e da força física, pois estas dedicavamse predominantemente à guerra, que tinha a finalidade de conquistar escravos e manter a ordem vigente. Nessas sociedades, amparados em leis e em costumes, se uma criança apresentasse, ao nascer, algum "defeito" que viesse a se contrapor de alguma forma ao ideal proposto era eliminada ou abandonada sem que isso fosse considerado crime. Uma das práticas mais conhecidas do modo de produção escravista em relação às pessoas com deficiência foi a adotada em Esparta. Nesta CidadeEstado, todo recém nascido que fosse filho da nobreza necessitava ser, em conformidade com as leis vigentes, examinada por uma espécie de comissão oficial formada por anciãos de reconhecida autoridade, que se reunia para tomar conhecimento do novo cidadão. Conforme estas leis, se a criança (...) lhes parecia feia, disforme e franzina, como refere Plutarco, esses mesmos anciãos, em nome do Estado e da linhagem de famílias que representavam, ficavam com a criança. Tomavamna logo a seguir e a levavam a um local chamado "Apothetai", que significa "depósitos". Tratavase de um abismo situado na cadeia de montanhas Taygetos, perto de Esparta, onde a criança era lançada e encontraria sua morte, "pois, tinham a opinião de que não era bom nem para a criança nem para a república que ela vivesse, visto como desde o nascimento não se mostrava bem constituída para ser forte, sã e rija durante toda a vida" (SILVA, 1986, p.122). Sintonizados com estes procedimentos, alguns dos mais renomados filósofos da antigüidade emitiram suas opiniões a respeito do extermínio ou abandono de pessoas com deficiência: Em Atenas, Platão (428348 a.C.), ao procurar descrever sobre como deveria ser uma república perfeita, afirma: "... e no que concerne aos que receberam corpo mal organizado, deixaos morrer (...). Quanto às crianças doentes e as que sofrerem qualquer deformidade, serão levadas, como convém, a paradeiro desconhecido e secreto" (PLATÃO apud SILVA, 1986, p.124). Ainda nesta mesma CidadeEstado, Aristóteles (384 322 a.C.) também manifestou sua opinião em relação às pessoas com deficiência: "quanto a saber quais as crianças que se deve abandonar ou educar, deve haver uma lei que proíba alimentar toda criança disforme" (ARISTÓTELES apud SILVA, 1986, p.124). Assim como Platão e Aristóteles na Grécia, em Roma Cícero e Sêneca também emitiram suas opiniões a respeito das pessoas com deficiência e de como se deveria proceder em relação a elas. Cícero, que viveu entre 106 a.C. 43 a.C., comenta em sua obra "De Legibus", que nas Leis das Doze Tábuas havia uma determinação para o extermínio de crianças consideradas como anormais: "Tábua IV Sobre o Direito do Pai e Direito do Casamento: Lei III O pai imediatamente matará o filho monstruoso e contrário à forma do gênero humano que lhe tenha nascido há pouco" (CÍCERO apud SILVA, 1986, p.128). Este mesmo filósofo romano emitiu seu ponto de vista a respeito do como se deveria proceder em relação às pessoas com deficiências múltiplas: reunamos agora todos esses males num só indivíduo. Que ele seja surdo e cego e que prove atrozes dores ele será logo consumido por esses sofrimentos e, se por falta de sorte eles chegarem a se prolongar, por que suportálos? A morte é um refúgio seguro onde esse indivíduo estará ao abrigo dessas horrendas misérias (CÍCERO apud SILVA,1986, p.141). Sêneca (4 a.C.65 d.C.), ao comentar a prática do assassinato de recémnascidos com deformidades, procura demonstrar que na sua existência os homens necessitam tomar determinadas atitudes que devem ser encaradas com naturalidade. Ele cita exemplos de práticas que pareciam ser bastante aceitáveis naquele período histórico: (...) Riscai, então, do número dos vivos a todo culpado que ultrapasse o limite dos demais, terminai com seus crimes do único modo viável, mas fazeio sem ódio (...). Não se sente ira contra um membro gangrenado que se manda amputar; não o cortamos por ressentimento, pois, tratase de um rigor salutar. Matamse cães quando estão com raiva; exterminamse touros bravios; cortamse as cabeças das ovelhas enfermas para que as demais não sejam contaminadas; matamos os fetos e os recémnascidos monstruosos; se nascerem defeituosos e monstruosos, afogamolos; não devido ao ódio, mas à razão, para distinguirmos as coisas inúteis das saudáveis (SÊNECA apud SILVA, 1986, p.128129). Para que o pater família pudesse assassinar seu filho recémnascido, bastaria que o mesmo apresentasse a criança a um grupo de cinco pessoas, as quais deveriam atestar sua monstruosidade e, com isto, condenála ao abandono ou à morte. A chamada monstruosidade não se referia tão somente às pessoas que nascessem com características muito diferentes das do ser humano, mas também, àquelas deficiências que poderiam resultar em dificuldades severas para que os mesmos conseguissem dar conta das tarefas que lhes seriam colocadas ao longo de suas vidas. Na bibliografia disponível sobre a existência de pessoas com deficiência no modo de produção escravista, poucos registros são encontrados a respeito daqueles pertencentes aos setores sociais dominados e oprimidos, principalmente em relação aos escravos. Porém, atendose a alguns elementos constituintes deste modo de produção, é possível elaborar uma idéia de como deve ter sido a vida de uma pessoa com deficiência não pertencente a classe dominante. Eram extremamente brutais as formas de exploração no regime escravagista. A duração da vida do escravo não tinha importância para o seu senhor. Por isso, procurava tirar dele o máximo proveito num prazo mais curto possível. A mortalidade entre os escravos era muito elevada. Freqüentemente, a exploração impiedosa do escravo durante 78 anos causava a sua morte (ERMAKOVA e RÁTNIKOV, 1986, p. 43). Plutarco, ao se referir à forma pelas quais um escravagista tratava os seus escravos, afirma que "Catão não só martirizava os seus escravos, como os instruía em certas artes, para vendêlos mais caro posteriormente; não só abandonava, como o 'ferro velho', os escravos inservíveis, como cobrava uma taxa dos que queriam se divertir com as suas escravas" (PLUTARCO apud PONCE, 1992, p. 65). Embora não esteja explicitado que os "escravos inservíveis" fossem aqueles que possuíssem alguma deficiência, certamente estavam enquadrados nesta categoria os que, ao longo de sua vida, viessem a adquirir graves problemas físicos, sensoriais e mentais. Esta afirmação pode ser deduzida do fato de que os escravos só se tornavam rentáveis ao seu proprietário na medida em que obtinham, com o trabalho, uma produção acima daquilo que necessitavam consumir para continuarem vivos, ou seja, um excedente que fosse capaz de financiar toda a superestrutura necessária às relações de produção escravista. Este excedente certamente não poderia ser obtido por alguém com uma grave deficiência que lhe limitasse os movimentos, sua capacidade sensorial e a possibilidade de compreensão das tarefas que deveriam ser desenvolvidas, sem que o mesmo tivesse que ser habilitado ou reabilitado para as atividades produtivas, o que implicaria na utilização de tecnologias adaptadas, as quais ainda não existiam e, mesmo que já existissem, não interessaria aos detentores do poder – assim como não interessa hoje –, pois a adaptação tecnológica acarretaria no aumento dos custos de produção. Diante disso, deve ter sido muito mais vantajoso para o escravagista livrarse do escravo que nascesse ou adquirisse alguma deficiência. Algumas pessoas com deficiência, que sobreviviam no modo de produção escravista e que não encontravam condições para serem escravos nem amos, acabavam vivendo sobre a proteção de um poderoso patrício. Isto passou a ocorrer, principalmente, na Roma dos Césares, em tempos mais sofisticados, onde "deficientes mentais, em geral tratados como 'bobos', eram mantidos nas vilas ou nas propriedades das abastadas famílias patrícias, como protegidos do pater famílias" (SILVA, 1986, p. 130). Ainda conforme este mesmo autor, em Roma cegos, surdos, deficientes mentais, deficientes físicos e outros tipos de pessoas nascidas com malformações eram também de quando em quando ligados a casas comerciais, a tavernas, a bordéis, bem como a atividades dos circos romanos, para serviços simples e às vezes humilhantes, costume esse que foi adotado por muitos séculos na História da Humanidade (SILVA, 1986, p. 130). Na antigüidade, em alguns lugares onde ocorria grande concentração humana, pessoas com deficiência passaram a ser utilizadas para mendigar ou enquanto objetos de espetáculos circenses. Quando estas, em razão de sua anormalidade, começaram a ser utilizadas economicamente como pedintes ou enquanto seres bizarros em espetáculos, neste momento elas passaram a ter algum valor mercantil. Este acontecimento pode ser observado nas palavras do historiador Durant, o qual afirma que "existia em Roma um mercado especial para compra e venda de homens sem pernas ou braços, de três olhos, gigantes, anões, hermafroditas" (DURANT apud SILVA, 1986, p. 130) . Já o modelo da institucionalização foi uma outra forma de se tratar as pessoas com deficiência, o qual já havia sido iniciado no final da antigüidade, aprofundado na Idade Média e se tornou predominante na quase totalidade do modo de produção capitalista, principalmente em relação àquelas pertencentes às classes exploradas da sociedade. No início, tratavase de instituições (asilos, hospitais e hospícios) geralmente mantidas pela Igreja Católica – principal organização econômica e política da Idade Média ou por ricos senhores, nas quais eram internadas uma parte das pessoas idosas e doentes que não dispunham de condições de proverem seus meios de vida. Estes lugares "serviram também de abrigo para pessoas impossibilitadas de prover seu próprio sustento, devido a sérias limitações físicas e sensoriais" (SILVA, 1986, p.204). Com o estabelecimento desses asilos, hospitais e hospícios, as pessoas com deficiência eram retiradas do convívio social e enclausuradas, passando a viver junto aos doentes ou moribundos. A partir desse tratamento, principalmente o proposto pela Igreja Católica, (...) o deficiente tem que ser mantido e cuidado. A rejeição se transforma na ambigüidade proteçãosegregação ou, em nível teológico, no dilema caridadecastigo. A solução do dilema é curiosa: para uma parte do clero, vale dizer, da organização sóciocultural, atenuase o 'castigo' transformandoo em confinamento, isto é, segregação (com desconforto, algemas e promiscuidade), de modo tal que segregar é exercer a caridade, pois o asilo garante um teto e alimentação. Mas, enquanto o teto protege o cristão, as paredes escondem e isolam o incômodo ou inútil. Para outra parte da sóciocultura medieval cristã, o castigo é caridade, pois é meio de salvar a alma do cristão das garras do demônio e livrar a sociedade das condutas indecorosas ou antisociais do deficiente (PESSOTTI, 1984, p.7). Apesar da existência dessas instituições, é importante salientar que na Idade Média, a maioria das pessoas com deficiência não eram internadas. Isso ocorria porque a sociedade não dispunha de recursos suficientes para adotar tal procedimento, o que levava boa parte dessas pessoas a sobreviver da mendicância. Existiam também aqueles que eram aproveitados nas atividades laborais desenvolvidas no interior dos feudos, o que se tornava possível devido a maior parte da produção ocorrer no âmbito familiar, onde cada individuo poderia trabalhar segundo as suas condições físicas, sensoriais e mentais. Até o final da Idade Média, a pessoa com deficiência era vista somente sob o aspecto místico. Nesta abordagem, ela poderia ser considerada como o resultado da ação de forças demoníacas, como um castigo para pagamento de pecados seus ou de ancestrais e ainda, como um instrumento para que se manifestassem as obras de Deus. A vinculação entre deficiência e forças demoníacas ou maus espíritos, que se encontra presente nos principais pensamentos teológicos ocidentais teve origem na prática das comunidades primitivas, o que se pode constatar ao analisar alguns povos que viveram e ainda vivem neste modelo de sociedade. É o caso dos Xaggas, os quais habitam as fraldas do monte Kilimanjaro, ao norte da Tanzânia (leste da África). Segundo Silva (1986), "no seio dessa tribo primitiva ninguém se atreve a prejudicar ou a matar crianças ou adultos com deficiências, pois segundo acreditam, os maus espíritos habitam nessas pessoas e nelas se aquietam e se deliciam, o que torna a normalidade possível a todos os demais" (p.42). Uma das mais antigas religiões é o Judaísmo, que surgiu na antigüidade no seio do povo hebreu e apresentou como principal característica o monoteísmo. Suas origens remontam à existência do patriarca Abraão sendo que, com os escritos de Moisés, ganhou uma forma mais elaborada e definitiva. Esses escritos consistem num conjunto de normas e leis para orientar e disciplinar a vida daquele povo, as quais devem ser seguidas com a finalidade de alcançar a paz celestial. Para os seguidores desta cultura religiosa, "tanto a doença crônica quanto a deficiência física ou mental, e mesmo qualquer deformação por menor que fosse, indicava um certo grau de impureza ou de pecado" (SILVA, 1986, p.74). Um exemplo desta concepção a respeito das pessoas com deficiência encontrase no livro de Moisés, chamado "Levítico" e que hoje compõe o Antigo Testamento da Bíblia Sagrada. Nesses escritos, esta importante personalidade da história judaica estabelece as leis e as orientações para os sacerdotes conforme "o Senhor havia lhe dito": “Homem algum de tua linhagem, por todas as gerações, que tiver um defeito corporal, oferecerá o pão de seu Deus. Desse modo, serão excluídos todos aqueles que tiverem uma deformidade corporal: cegos, coxos, mutilados, pessoas de membros desproporcionados, ou tendo uma fratura do pé ou da mão, corcundas ou anões, os que tiverem uma mancha no olho, ou a sarna, um dartro ou os testículos quebrados. Homem algum da linhagem de Abraão, o sacerdote, que for deformado, oferecerá os sacrifícios consumidos pelo fogo sendo vítima de uma deformidade, ele não poderá apresentarse para oferecer o pão de seu Deus. Mas poderá comer o pão de seu Deus, proveniente das ofertas santíssimas e das ofertas santas. Não se aproximará, porém, do véu nem do altar, porque é deformado. Não profanará meus santuários, porque eu sou o Senhor que os santifico" (BÍBLIA SAGRADA, 1995, Levítico, 21:1723). No que se refere ao cristianismo, que é o pensamento teológico predominante no ocidente, existem passagens bíblicas em que aparecem pessoas com deficiência sendo "curadas" por Jesus. Estas passagens encontramse especialmente nas palavras dos evangelistas, onde "segundo seus relatos, Jesus fez mais de 40 milagres notórios. Deles todos, pelo menos 21 são relacionados a pessoas portadoras de deficiências físicas ou sensoriais (...)" (Silva, 1986, p. 88). Analisando estas passagens, é possível perceber que no cristianismo, as causas das deficiências podem ser atribuídas a possessão de maus espíritos, castigos por pecados seus ou de ancestrais e ainda como instrumentos para realização de obras divinas. Para ilustrar esta afirmação, algumas passagens contidas no livro dos evangelistas merecem ser destacadas: Dentre os milagres contidos nos Evangelhos que tratam a causa das deficiências enquanto a interferência dos maus espíritos, encontramse as palavras de Marcos a respeito do surdomudo de Cesaréia. Segundo este evangelista: (...) ele lhes perguntou: Que estais discutindo com eles? Respondeu um homem dentre a multidão: Mestre eu te trouxe meu filho, que tem um espírito mudo. Este, onde quer que o apanhe, lançao por terra e ele espuma, range os dentes e fica endurecido. Roguei a seus discípulos que os expelissem, mas não o puderam. Respondeulhes Jesus: Ó geração incrédula, até quando estarei convosco? Até quando vos ei de aturar? Trazeimo cá! Eles trouxeram. Assim que o menino avistou Jesus, o espírito agitou fortemente. Caiu por terra e revolviase espumando. Jesus perguntou ao pai: Há quanto tempo lhe aconteceu isto? Desde a infância, respondeulhe. E o tem lançado muitas vezes ao fogo e a água e ao fogo, para o matar. Se Tu, porém, podes alguma coisa, ajudanos, compadecete de nós! Disselhe Jesus: Se podes alguma coisa! Tudo é possível ao que crê. Imediatamente exclamou o pai do menino: Creio! Vem em socorro a minha falta de fé! Vendo Jesus que o povo afluía, intimou o espírito imundo e disselhe: espírito mudo e surdo, eu te ordeno: Sai deste menino e não tornes a entrar nele. E, gritando e maltratandoo extremamente, saiu. O menino ficou como morto, de modo que muitos diziam: Morreu (BÍBLIA SAGRADA, 1995, Marcos, 9: 1626). Já em relação ao pecado, como gerador de deficiência, encontrase nos evangelhos um milagre recebido pelo paralítico de Cafarnaum. O evangelista Mateus utiliza as seguintes palavras para se referir ao mesmo: Jesus tomou de novo a barca, passou o lago e veio para sua cidade. Eis que lhe apresentaram um paralítico estendido numa padiola. Jesus, vendo a fé daquela gente, disse ao paralítico: Meu filho, coragem! Teus pecados te são perdoados. (...) Levantate disse ele ao paralítico , toma a tua maca e volta para tua casa. Levantouse aquele homem e foi para sua casa. Vendo isto, a multidão encheuse de medo e glorificou a Deus por ter dado tal poder aos homens (BÍBLIA SAGRADA, 1995, Mateus, 9: 18). O entendimento da deficiência como instrumento para despertar no povo o sentimento de bondade e de caridade pode ser observado nas palavras de João, quando este fala a respeito de um diálogo entre Jesus e alguns de seus seguidores sobre as causas que teriam levado uma pessoa a ser cega desde o nascimento: Caminhando, viu Jesus um cego de nascença. Os seus discípulos indagaram dele: Mestre, quem pecou, este homem ou seus pais, para que nascesse cego? Jesus respondeu: Nem este pecou nem seus pais, mas é necessário que nele se manifestem as obras de Deus. Enquanto for dia cumpreme terminar as obras daquele que me enviou. Virá a noite, na qual ninguém mais pode trabalhar. Por isso, enquanto estou no mundo, sou a luz do mundo. Dito isso, cuspiu no chão, fez um pouco de lodo com a saliva e com o lodo ungiu os olhos do cego. Depois lhe disse: vai lavate na piscina de Siloé [esta palavra significa emissário]. O cego foi, lavouse e voltou vendo (BÍBLIA SAGRADA, 1995, João, 9: 17). O modelo místico começa a ser contestado a partir de alguns acontecimentos que passaram a ocorrer ainda no final da Idade Média. As descobertas geográficas do final da primeira metade do segundo milênio contribuíram para que nos séculos XVI e XVII ocorresse um gradativo aumento do mercado por produtos manufaturados, a possibilidade de maior acumulação de capitais e o desenvolvimento da ciência e da tecnologia, ampliando as condições do homem na luta para dominar a natureza. Isso permitiu a ele figurar como ator principal, questionando o teocentrismo e inaugurando o antropocentrismo. Essas transformações, que representaram o fim do feudalismo e o surgimento do modo de produção capitalista, fizeram com que, aos poucos, os tradicionais costumes medievais fossem perdendo força e, em seu lugar, nascesse a cultura da sociedade moderna. Para tanto, os novos donos do poder retiraram de cena a nobreza e o clero. “Os burgueses compraram as suas terras; a pólvora derrubou os seus castelos. Os navios apontavam agora as rotas de um continente remoto, mais inacessível do que as princesas de Trípoli, que só poderia ser conquistado mediante a indústria e o comércio.” (PONCE, 1992, p.112). Articulados a esses acontecimentos históricos processavamse outros que iriam favorecer o desenvolvimento do modo de produção capitalista. Dentre esses, encontramse “A expansão do espírito e dos conteúdos do humanismo em toda Europa (...); a assunção das aristocráticas exigências humanísticas e a mediação entre estas e as exigências ascéticopopulares numa perspectiva de reformas religiosa e social que envolvam na cultura as classes subalternas; a reação contra todas estas tentativas de inovação, que abalam os fundamentos morais e políticos das velhas sociedades, isto é, o catolicismo e as cúpulas do papado e do império; a necessidade, na rejeição do mundo medieval no encontro com a civilização de outros continentes, de projetar uma sociedade totalmente nova e ainda inexistente; o rompimento definitivo dos velhos equilíbrios políticos determinados pelo advento ao poder, nos Países Baixos e na Inglaterra, da grande burguesia moderna, com as mudanças culturais que isso implica (MANACORDA, 1997, p.193). Foi nesse contexto que algumas pessoas melhor ajustadas à realidade de seu tempo começaram a questionar a forma pela qual os homens eram obrigados a agir e pensar. Dentre estes questionamentos encontravamse alguns dogmas da igreja católica, que condenavam o acúmulo de riqueza e eram empecilho para o desenvolvimento do novo modo de produção. Esse movimento, que ficou conhecido como Reforma, não entrava em contradição com o objetivo final da ação dos industriais, dos banqueiros e dos comerciantes, ou seja, o lucro, já que introduziu novos preceitos religiosos distintos daqueles predominantes na sociedade feudal, que era dominada pelos guerreiros e sacerdotes, onde o homem era ensinado a viver despreocupado das questões mundanas e a se dedicar às atividades que pudessem ajudálo na salvação de sua alma. A reforma "(...) dividiuse em muitas seitas diferentes, mas em todas, e em graus variados, o capitalista interessado nos bens materiais podia encontrar consolo" (HUBERMAN, 1981, p.179). Para exemplificar estas mudanças, podem ser lembrados os ensinamentos dos puritanos que, ao contrário da doutrina católica que condenava, na teoria, o acúmulo de riqueza, afirmavam que o homem rico era um bemaventurado. Se Deus vos mostra o caminho pelo qual podeis ganhar mais, legalmente, do que em qualquer outro (sem dano para a nossa alma ou para qualquer outra) e se recusais, escolhendo o caminho menos lucrativo, estareis faltando a uma de vossas missões, e rejeitando a orientação divina, deixando de aceitar Seus dons para usálos quando Ele o desejar; podeis trabalhar para serdes ricos para Deus, embora não para a carne e o pecado. (HUBERMAN, 1981, p.179180). Essa concepção também pode ser encontrada nas pregações dos metodistas, os quais afirmam por meio das palavras de um de seus principais expoentes que "não devemos impedir as pessoas de serem diligentes e frugais; devemos estimular todos os cristãos a ganhar tudo o que puderem, e a economizar tudo o que puderem; ou seja, na realidade, a enriquecer" (WESLEY apud HUBERMAN, 1981, p.180). Ainda para demonstrar que a teologia cristã proposta pelos reformadores estava em conformidade com a nascente ordem social, podese destacar os calvinistas. Seu fundador, procurando dissociar o lucro do capitalista e o pecado, formulou as seguintes questões: "por que razão a renda com os negócios não deve ser maior do que a renda com a propriedade da terra? De onde vêm os lucros do comerciante, senão de sua diligência e indústria?" (CALVINO apud HUBERMAN, 1981, p.180). As mudanças propostas pelos reformistas não ocorreram em todas as direções, mas pelo contrário, em alguns casos, os mesmos propuseram a adoção de velhos procedimentos que não entravam em contradição com o novo período histórico. Dentre estes, encontrase a sua forma de ver, compreender e tratar as pessoas com deficiência. Martinho Lutero (14831546) que segundo PONCE (1992) era "(...) intérprete (...) da burguesia moderada e da pequena nobreza [e que] só pretendia acabar com o poderio do clero e instituir uma Igreja pouco dispendiosa" (p.119) ao expressar seu pensamento a respeito das causas das deficiências e a sua opinião sobre o modo de se proceder em relação às pessoas que as possuíam, revela seu profundo desprezo por aqueles que pertenciam a este segmento social. Essa afirmação pode ser evidenciada através de suas próprias palavras, ao se referir à inconveniência da existência de uma pessoa com deficiência mental: Há oito anos vivia em Dessau um ser que eu, Martinho Lutero, vi e contra o qual lutei. Há doze anos, possuía vista e todos os outros sentidos, de forma que se podia tomar por uma criança normal. Mas ele não fazia outra coisa senão comer, tanto como quatro camponeses na ceifa. Comia e defecava, babavase, e quando se lhe tocava, gritava. Quando as coisas não corriam como queria, chorava. Então, eu disse ao príncipe de Anhalt: se eu fosse o príncipe, levaria essa criança ao Moldau que corre perto de Dessau e a afogaria. Mas o príncipe de Anhalt e o príncipe de Saxe, que se achava presente, recusaram seguir o meu conselho. Então eu disse: pois bem, os cristãos farão orações divinas na igreja, a fim de que Nosso Senhor expulse o demônio. Isso se fez diariamente em Dessau, e o ser sobrenatural morreu nesse mesmo ano (LUTERO apud PESSOTTI, 1984, p.13). Ao analisar estas palavras podese afirmar que elas refletem concepções e práticas de diferentes períodos históricos em relação às pessoas com deficiência. Isto porque ao falar da inutilidade da criança e ao comparar “seu gasto” com a de "quatro camponeses na ceifa", explicita uma visão economicista da existência do ser humano, fato este que é levado às ultimas conseqüências pelo modo de produção capitalista; na medida em que o mesmo define a causa da deficiência com base nos tradicionais dogmas do cristianismo, expressa uma abordagem mística, não contestada até o final do período feudal; e ao propor a morte do “inútil”, enquanto a solução do "problema", regrediu até a sociedade escravista. A abordagem mística, por atribuir a causa das deficiências às forças metafísicas, torna o indivíduo e a sociedade impotentes diante da situação e gera uma visão fatalista a respeito da existência das pessoas que as possui. Esse entendimento ainda hoje se encontra presente no imaginário social, principalmente devido às influências do pensamento religioso. Ao contrário da nova religião – Protestantismo que praticamente manteve as tradicionais concepções místicas a respeito das pessoas com deficiência, o progresso científico, impulsionador e impulsionado pelo desenvolvimento econômico, político, social e cultural, verificado na sociedade moderna, começou a refletir na forma de se ver, compreender e tratar aqueles que pertencem a este segmento. A primeira forma de compreensão da pessoa com deficiência, derivada da ciência moderna ainda fortemente presente no imaginário social, é classificada por VIGOTSKI (1997) como "Biológica Ingênua" (p.33). Segundo este mesmo autor, esta teoria afirma que "As relações entre os órgãos dos sentidos se equiparam diretamente com as relações entre os órgãos pares; o tato e a audição compensam diretamente a visão que há declinado, como o rim são, compensa o doente; o menos orgânico se cobre mecanicamente do mais orgânico (...)" (VIGOTSKI, 1997, p.3334). Esta teoria tem servido para fundamentar, dentre outros entendimentos, a idéia de que o tato e o ouvido dos cegos substitui a sua visão e que a audição dos surdos é substituída pela sua grande capacidade de ver. "A prática e a ciência faz tempo desmascararam a falta de fundamento desta teoria. Uma investigação baseada em fatos tem demonstrado que na criança cega não há o aumento automático do tato ou da audição devido à visão que lhe falta (...). Pelo contrário, a visão por si mesma não se substitui, senão que as dificuldades que surgem devido à sua falta se solucionam mediante o desenvolvimento da superestrutura psíquica" (VIGOTSKI, 1997, p.34). A despeito desses equívocos, a teoria biológica ingênua foi importante na medida em que deu as primeiras contribuições para romper com o fatalismo da abordagem mística a respeito das possibilidades de existência das pessoas com deficiência e começou a colocar a questão no âmbito da ciência. Com este novo enfoque, "no lugar da mística foi posta a ciência, no lugar do preconceito, a experiência e o estudo" (VIGOTSKI, 1997, p.76). Tratouse da entrada em cena do modelo biológico, o qual forneceu os primeiros pressupostos científicos para a educação das pessoas com deficiência. Apesar desse avanço, que começa a ocorrer já nos dois primeiros séculos da sociedade moderna (sécs. XVI e XVII), o que se verificou, principalmente com aqueles que pertenciam aos setores explorados da população, foi a segregação através do internamento, o que ficou conhecido como processo de institucionalização das pessoas com deficiência. Com o novo modo de produção, as relações humanas passaram a ser organizadas em função de um processo produtivo voltado para a acumulação de lucros. Nesse modelo, aqueles que não se ajustam à lógica do sistema de exploração, passam a ser considerados como perturbadores da ordem social; dentre estes, encontramse as pessoas com deficiência, as quais, juntamente com outros "divergentes", passaram a ser internadas em asilos, manicômios, hospícios etc. "O que ocorreu, na verdade, foi o isolamento daqueles que interferiam e atrapalhavam o desenvolvimento da nova forma de organização social, baseada na homogeneização e na racionalização" (SILVEIRA BUENO, 1993, p.63 ). Segundo este mesmo autor, "O que se pode depreender destes dois séculos é o início do movimento contraditório de participaçãoexclusão que caracteriza todo o desenvolvimento da sociedade capitalista, que se baseia na homogeneização para a produtividade e que perpassará toda a história da educação especial" (SILVEIRA BUENO, 1993, p.63). A educação sistematizada das pessoas com deficiência, que passou a ocorrer nesse período, se restringiu basicamente aos filhos da nobreza e da nascente burguesia enriquecida, os quais puderam usufruir de sua condição de membros das elites. Os demais estavam largados à própria sorte. "Essa massa não tem nome, não tem história, não tem pátria. Eram, juntamente com muitos outros que não quiseram ou não puderam se submeter à nova ordem, a escória da qual nada mais resta senão as estatísticas dos asilos e a menção de que fazia micagens na feira ou que tocava desafinadamente uma rabeca pelas ruas em troca de alguns níqueis" (SILVEIRA BUENO, 1993, p.63). Aos poucos, os pressupostos científicos para a educação das pessoas com deficiência passam a ser estendidos aqueles que pertenciam às camadas populares. Foi com base nesses pressupostos que foram organizadas na França, na segunda metade do século XVIII, as primeiras instituições voltadas para a educação de surdos (1760) e cegos (1784). O surgimento das primeiras instituições especializadas na educação de pessoas com deficiência quase sempre é apresentado pelos historiadores como sendo o resultado do esforço da moderna sociedade em oferecer educação escolar a este segmento. "Se o surgimento das primeiras instituições escolares especializadas correspondeu ao ideal liberal de extensão das oportunidades educacionais para todos, (...) respondeu também ao processo de exclusão do meio social daqueles que podiam interferir na ordem necessária ao desenvolvimento da nova forma de organização social" (SILVEIRA BUENO, 1993, p.64). Isso passou a ocorrer na medida em que essas instituições foram rapidamente perdendo o seu caráter educativo e se transformando em espaço de isolamento e exploração daquelas pessoas com deficiência pertencentes às classes exploradas, pois estes eram obrigados à internação e ao "(...) trabalho forçado, manual e tedioso, parcamente remunerado, quando não em troca de um lugar no maravilhoso espaço do asiloescolaoficina" (SILVEIRA BUENO, 1993, p.69). Com o tempo, este modelo se espalhou para praticamente todos os países do mundo, geralmente mantido por ações filantrópicas e tendo como função principal recolher e isolar do convívio social todas as pessoas que interferiam e atrapalhavam o desenvolvimento da nova forma de organização social, baseada na homogeneização e na racionalização, orientada por uma lógica voltada para a produção e o lucro. Dados quantitativos afirmam que nos últimos dois séculos houve uma grande expansão da educação especial. Porém, é preciso considerar que isso ocorreu com a incorporação de alunos que, no seu surgimento, não faziam parte de suas preocupações, isto é: daqueles que apresentavam distúrbios de linguagem, distúrbios emocionais e os considerados com problemas de aprendizagem, os quais passaram a ser a imensa maioria dos freqüentadores do ensino especializado. Dessa forma, "a ampliação da educação especial espelhou muito mais o seu caráter de avalizadora da escola regular que, por trás da igualdade de direitos, oculta a função fundamental que tem exercido nas sociedades capitalistas modernas: o de instrumento de legitimação da seletividade social" (SILVEIRA BUENO, 1993, p.80). Foi por volta da metade do século XX que o paradigma da Institucionalização começou a ser criticamente examinado e denunciado como sendo uma prática que violava os direitos do homem. Esta crítica estava inscrita dentro de um contexto marcado pelo crescimento da luta pelos direitos humanos de todas as minorias sociais. Esse movimento levou ao estabelecimento do modelo da integração. Este modelo está alicerçado na oferta de serviços, com a finalidade de normalizar as pessoas com deficiência. Em conformidade com este modelo, o principal problema para a inserção social do indivíduo com deficiência sensorial, física e mental é o defeito que ele possui e, dessa forma, há a "(...) necessidade de modificar a pessoa com necessidades educacionais especiais, de forma que esta pudesse vir a se assemelhar, o mais possível, aos demais cidadãos, para então poder ser inserida, integrada, ao convívio em sociedade" (BRASIL, 2000, p.16). Os serviços para tentar normalizar cegos, surdos e pessoas com deficiência física ou mental se efetivou